20 de abril de 2012

Resposta a Eder Wen

Prezado Eder: 

Como impulsos biológicos de sobrevivência puramente animal, qualquer coisa é compreensível: defender posições filosóficas no meio da incomunicação, insistir em ser reconhecido, procriar, abortar, assassinar, fazer ética negativa, etc. Estamos vivos por enquanto e somos compelidos por poderosas forças naturais que nos levam a fazer coisas absurdas como esse seminário. A questão não são os impulsos, mas os argumentos; e segundo os argumentos, procriar, abortar e matar são imorais, além de ser impulsos naturais; creio que fazer filosofia, arte, música, etc, são menos imorais; discutir filosofia é, segundo vejo, uma manifestação animal natural como outra qualquer, uma forma de luta e de predomínio sobre o outro onde qualquer conteúdo serve; certamente, eu mesmo caio sob essa crítica: quando digo que toda e qualquer forma de discussão ou de busca de reconhecimento é vão, claro que incluo as discussões em que eu me enfronho e as minhas próprias ânsias de reconhecimento; como é que poderia não incluir?

Como já te falei pessoalmente, e em aula, teus argumentos são da forma Tu Quoque (ou seja: Você faz a mesma coisa que critica). Em lugar de simplesmente apontar para essa falácia (dizendo algo como: “O conteúdo de um argumento deve diferenciar-se do direito que alguém tem de enunciá-lo”), prefiro responder a este tipo de argumento da seguinte forma: “sim, é verdade; como poderia não ser? Se eu fosse uma exceção a meu próprio argumento, este seria incorreto. Quando afirmo que não nos comunicamos, incluo esta mesma mensagem”. Como escrevi para o Marcelo Senna, o fato de você ter estimulado suas ideias, ter escrito seus dois e-mails, ter pensado em montões de coisas depois do seminário, etc, nada tem a ver com comunicação; são subprodutos que você obteve quando você levou tudo o que escutou para seu próprio universo e ali você os elaborou; “resultados positivos” você tem de tudo, mesmo das maiores catástrofes (posso dizer que o Nacional-socialismo intensificou os estudos éticos nas universidades alemãs de pós-guerra).

Enquanto a busca por reconhecimento, ela é uma forma de autovalorização que, enquanto estivermos vivos, precisamos. É realmente uma tolice participar de discussões filosóficas, mas um animal evoluído que estudou filosofia ainda pretende o absurdo de querer convencer aos outros da correção dos seus argumentos. Trata-se de absurdos auto-incluintes. Não se trata de temor de enfrentar argumentos porque eles possam ser sólidos contra a própria posição; isso não é uma possibilidade, mas uma certeza total: certamente, quando o outro tiver levado a minha fala para seu próprio universo, ele terá os melhores argumentos a seu favor; e eu farei o mesmo com os argumentos dele, e já estamos instalados no meio de uma luta animal como outra qualquer; sem garras nem dentes, mas com argumentos, tão violentos quanto aqueles.

Ontico-ontológico: as desconsiderações cotidianas (filas, barulhos) não têm solução porque são ressonâncias da terminalidade ontológica do ser? Isto se vincula com as perguntas de tipo social do Gabriel Silveira, que vou responder nesses dias. Penso que as pessoas fazem barulho numa tentativa desesperada de dar-se valor a si mesmas, o que inclui desvalorizar os outros, mostrar seu poder animal, seu domínio de uma área, estender os limites de vidas acuadas e frustradas pela falta de lazer, o trabalho excessivo, a falta de oportunidades; todas as medidas sociais que se tomem para aliviar essas situações num setor da rede, poderão criar outros problemas e outras vítimas em outros setores. Penso que as pessoas poderiam, teoricamente, comportar-se de maneiras menos desconsideradas, mas que a ansiedade de viver, o "amor pela vida", o desejo de "viver intensamente", etc, são extremamente depredadores; assim, o que é impossível no nível ontológico ressoa como impossibilidades no nível ôntico; poderia mudar, mas não vai mudar.

Infelizmente, você vai ter que odiar ética negativa, porque ela apenas aponta para o puramente negativo sem fornecer saídas; ou: há saídas, mas elas bloqueiam outros caminhos. Os humanos estamos colocados numa situação sem espaço para atender a todas as solicitações éticas, de maneira que qualquer solução positiva terá também efeitos negativos.

Acerca das expressões “ter valor negativo” e “não ter valor”, ler a página 15 do livro “Ética negativa: problemas e discussões” (Editora da UFG, Goiânia, 2008). 

Fazer ética negativa, ser pessimista, apontar para a miséria da nossa existência, são também mecanismos defensivos diante do ser-terminal e seus atritos; insisto, como impulsos animais de desespero e defesa, otimismo e pessimismo não se distinguem; apenas se distinguem pelos argumentos; otimismo e pessimismo são duas maneiras de lidar com o desamparo, a falta de base, a insegurança, o desânimo, etc; isto é bem colocado pelo Marcus Valério. Mas que exista ética negativa, que tenha surgido um filósofo que pensasse essas coisas, não era algo necessário nem mesmo desejável; trata-se de algo perfeitamente inútil, tanto quanto as filosofias otimistas. Certamente, não valeria a pena nascer para escrever a ética negativa; as coisas que fazemos nos agradam, mas são apenas defesas contra o fato de ter nascido; não tem sentido desejar nascer para defender-se de ter nascido; melhor não nascer, melhor não fazer ética negativa nem afirmativa, melhor nunca ter sido. E o mesmo diria de Mozart, Bergman e Machado de Assis: já estando aqui, foi bom para nós (embora talvez não para eles) que eles existissem; mas seria absurdo fazer nascer pessoas com a esperança de gerar um Mozart, um Bergman, um Machado ou um ético negativo.

Trágico e patético: nem mesmo as vidas de Gandhi ou de Abelardo e Heloisa foram trágicas de ponta a ponta; certamente foram patéticas na maior parte do tempo; deles os historiadores resgataram apenas as partes trágicas, escamoteando as patéticas; se algum historiador escolhesse cuidadosamente algumas partes das nossas próprias vidas, ele poderia construir uma bela tragédia para a posteridade; quando vemos um filme heroico e nos emocionamos, isso ocorre porque o diretor dispensou toda a cotidianidade patética dos personagens e ficou com uma antologia de cenas privilegiadas; qualquer vida humana, mesmo a mais insignificante, ficaria trágica após este recorte. Na maior parte das vidas, suas escassas partes trágicas ficam devastadas por suas cotidianidades patéticas; as nossas vidaz são filmes muito mal dirigidos.

Obrigado pelas questões; abraços, Julio Cabrera.

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