20 de abril de 2012

Militância Negativa

Gabriel Silveira: 

Então: a questão do social e a ética negativa; a princípio há como uma aparente incompatibilidade, porque a ética negativa é um dispor-se à morte em qualquer momento que a ética o exija, enquanto que o político demanda a existência indeterminada; uma política negativa deveria ser forçosamente uma política terminal exercida por uma espécie de militante suicida (no sentido largo dado por Diógenes Coimbra). Não há planos para o futuro longínquo, apenas a política imediata enquanto não se morre. Bom, algo como a política negativa de Cristo e Sócrates, os dois suicidas-base da nossa sociedade ocidental. Nada como uma “política” no sentido usual. Qualquer “mudança social” se opera dentro da rede onde inevitavelmente estamos inabilitados (Claudio Reis tem dúvidas terríveis sobre esta noção, totalmente crucial na ética negativa, dúvidas que ele me colocou em particular, e às quais vou responder neste mesmo espaço na próxima semana, se meu avião para Foz não cair; curiosamente, eu tenho que dar lá uma palestra sobre inabilitação moral). Em qualquer mudança social haverá vítimas, não apenas as previsíveis (os “inimigos”), mas as vítimas da própria mudança, seus pretensos "favorecidos".

Já escrevi, no trecho que você cita (de “Porque te amo...”), que considero o pessimismo estrutural um luxo de classe, e que uma das conquistas sociais negativas seria livrar aos miseráveis do seu obrigado “otimismo”, do seu “rir pra não chorar”; colocá-los diante do ser-terminal do ser em posição reflexiva (porque em posição existencial, os mais pobres já estão expostos aos raios mortais do ser; os mais ricos os alugam para proteger-se eles mesmos desses raios; o discreto encanto do ser-terminal). Mas isto tampouco é possível em sentido radical, porque a sociedade desabaria se todos tivessem meios econômicos para se proteger; as sociedades só se sustentam na base da miséria de uma parte da população; isso está previsto; dito em termos negativos: a ocultação bem-sucedida do ser-terminal não pode ser distribuída sem submeter uma parte da população a seus rigores.

Muitos burgueses pensam que as pessoas despossuídas são "mais felizes" que elas (por estarem distraídas do ser-terminal a nível reflexivo); mas é precisamente dessa “felicidade” que deveriam ser libertadas essas pessoas numa política negativa; trocá-la pela lucidez. Mas isso é impensável a nível global. Parece que a ética negativa deva ser uma dessas filosofias privadas das que fala Rorty; algo que contribui a enriquecer a nossa subjetividade, mas que de pouco serve para organizar socialmente a morte humana.

O mais importante que tenho publicado sobre política negativa é o ensaio 9 (o último) do livroAnálisis y Existencia. Pensamiento em travesía (Ediciones Del Copista, Córdoba, Argentina, 2010), chamado “Políticas negativas y éticas de la liberación: ¿es posible ser un pesimista revolucionario? (Mi encuentro con Enrique Dussel)”. O livro está sendo vendido pela Livraria Cultura, mas é caro e demorado. O texto desse capítulo pode ser achado na versão espanhola da minha página, como também minha polêmica com Dussel sobre suicídio.

Não entendi a tua última questão: “como falar da estrutura terminal do ser poderia garantir-se de não desconsiderar o acontecimento do ser do outro?” Bom, em meu novo livro de ética, “Mal-estares profundos”, estou tentando formular alguns "imperativos negativos"; o primeiro deles é, precisamente: não culpar ao outro do ser-terminal do ser; ou seja, dar-se por conta, a través de um imenso esforço, que o outro é uma vítima como eu, e que destruí-lo não me reportará qualquer benefício, mesmo que ele esteja “em meu caminho”; dar-se por conta de que o nosso inimigo comum é o ser; que é o ser que nos lança uns contra os outros como inimigos (se existisse Deus, o inimigo comum seria Ele, é claro). Não sei se é isso o que você queria dizer.

Estive folhando nestes dias teus “Escritos filosóficos de Juventude, breves encontros”; são tão lindos, mas me deixam melancólico; me deixam me perguntando o que será de todos vocês, pequenos filósofos brasileiros, nesta selva imensa chamada filosofia universitária onde já nada respira nem sua, apenas proclama.

Abraços desiguais, Julio Cabrera.

Um comentário:

  1. Erivaldo Fernandes Neto30 de junho de 2012 às 14:00

    Prezado Professor Julio Cabrera e demais pesquisadores,

    Li com grande interesse este texto, pois acredito que a Ética Negativa é uma reflexão, que através da análise radical dos paradigmas éticos da tradição filosófica, rompeu com a linha histórica da ética, que perdeu então a sua referência, que era inteiramente voltada para os interesses e formas de organização europeias. Sendo dessa forma, me arrisco a inferir que os pensamentos éticos devem ser feitos a partir da Ética Negativa, não sendo possível simplesmente negar a radicalidade de suas reflexões.
    Com isso, pensar pressupostos políticos a partir da Ética Negativa, parece ser o caminho que está aberto a nossa frente, para isso é preciso aprofundamos a reflexão da Negativa pelo viés social.

    A primeira parte do texto, me fez pensar nos relatos históricos da comunidade de Canudos e Palmares, mas principalmente de Canudos, que tenho especial interesse e já me aprofundei nos estudos históricos. Percebo na figura de Antônio Conselheiro, o "militante suicida" ao qual se refere o texto, pois quando foi fundado o Arraial de Canudos, ele já havia alertado a população de que a cidade acabaria em fogo, pois a república recém formada não iria permitir o governo anárquico de Canudos, principalmente por que a cidade não pagava impostos e não reconhecia o governo brasileiro como legitimo. Com isso é possível considerar que todo o povo que ali vivia, as 25 mil pessoas, entendiam o desvalor da vida, isso por que passaram por 4 guerras e não há relatos de que nenhuma família tenha fugido. O que me leva a acreditar que aquelas pessoas que estavam ali, entendiam a não valoração da vida, não fugiram de Canudos, por que não temiam a morte, ou melhor, não viam problema nenhum em deixar de viver, mas viam muitos problemas em ter que viver dentro de um estado dominador, que lhes dava a esperança de uma paz e uma segurança inalcançável.

    O segundo parágrafo é ainda mais interessante que o primeiro, pois justamente acredito que o papel prático principal da Ética Negativa é conscientizar os sujeitos a respeito do seu "estado terminal", da miserabilidade de sua existência, fazendo com que os sujeitos parem de se considerar merecedores de todas as coisas boas do mundo, deixando de lado a ilusão de que serão felizes. Essa postura diante da vida é que pode levar a uma reflexão radial sobre a condição social de cada um, pois a partir desta postura "terminal" da vida, os sistemas de domínio ficam aparentes. Acredito também que os sistemas de domínio, fundamentados e justificados pelas éticas afirmativas, são um grande obstáculo para uma proposta negativa de sociedade.

    Assim penso que uma ética, latino americana, teria que partir da Ética Negativa, pois o que a latino-america produzirá são esticas terceiro mundanas que numa consideração contemporânea do contexto social econômico, já estaria necessariamente em oposição à ética do primeiro mundo, a ética afirmativa grega, que afirma que um país é desenvolvido e outro não, para justificar as ações colonialistas e pseudo-civilizatórias que continuam até hoje.


    Agradeço o espaço e a oportunidade de estar compartilhando algumas ideias.

    Atenciosamente Erivaldo Fernandes Neto.

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