19 de abril de 2012

Ainda Políticas Negativas (respondendo ao Gabriel) - Julio Cabrera

Caros parceiros de sofrimento:

Introdução metodológica:


O pessimismo estrutural não consiste apenas na constatação da inabilitação moral e do sofrimento sensível, suficientes para declarar que viver uma vida humana é algo muito ruim, que só conseguimos suportar a través da geração de valores (e de dar-nos valor a nós mesmos), mas também na constatação da mais absoluta incomunicação filosófica à qual estamos submetidos pelo uso da linguagem ordinária, caracterizada pela ambiguidade, a vagueza, o que Tarski chamava a sua “universalidade” (a capacidade da linguagem ordinária de poder dizer tudo, algo maravilhoso para o poeta, cruel para o filósofo), e o que Friedrich Waismann chamava o caráter “poroso” da linguagem (open texture): “According to Waismann, open texture is not the same as vagueness, but rather the possibility of vagueness. In other words, the words we use to express our ideas have enough potential meaning and variability that we cannot be completely sure that we will always be able to verify them in the way we might like. Waismann wrote: ‘Take any material object statement. The terms which occur in it are nonexhaustive; that means that we cannot foresee completely all possible conditions in which they are used... and that means that we cannot foresee completely all the possible circumstances in which the statement is true or in which it is false’ ». 

Este círculo vicioso de uso ambíguo, vago, universal e poroso da linguagem se completa com algo que Waismann – creio eu - não tematiza : os poderosos mecanismos psicológicos que nos fazem sistematicamente nos autofavorecer no processo de comunicação, e, ao mesmo tempo, desqualificar aos outros: cada um de nós tem a ideia de nós sermos claros e compreensíveis, e serem os outros os que não entendem, seja por incompetência, distração, falta de informação, falta de interesse ou por má-fé. De maneira que a culpa da incomunicação é sempre do outro. (Costuma negar-se isto dizendo: “Não, não, vocês me conhecem bem; eu sou uma pessoa sempre disposta a me retificar e mudar de ideia se vocês me mostrarem um bom argumento”; só que nenhum argumento é nunca aceito como suficientemente bom para uma autocrítica; e as autocríticas que acontecem são estratégias para fortalecer a própria posição, como as autocríticas do marxismo clássico). Daí que o efeito Pinter tenha que ser reformulado e enriquecido, mais ou menos da seguinte forma: 

A: Eu afirmo que x. 

B: Então, você disse que x. 

A: Não, não, você não me entendeu; eu nunca disse isso; o que, na verdade, eu disse, foi que x. Quando você diz que eu disse que x, você estava, na verdade, entendendo x como w; mas eu nunca disse w. 

E lá se vai, com Waismann se retorcendo em seu túmulo poroso e Pinter ganhando seu polêmico Premio Nobel em 2005. 

Esta situação é de catástrofe e não tem saída. Isto mesmo que estou dizendo agora tampouco será entendido, e será colocado dentro de um contexto onde apareça como falso (ou ridículo ou imoral); e assim vai indo (ou melhor, não indo). Isto é um poderoso motivo para o pessimismo estrutural (muito mais, talvez, que as dores do mundo schopenhauereanas): estamos encapsulados dentro de uma prisão pública, que nem é mesmo uma mônada mas um espaço ao mesmo tempo aberto e sem saídas. (Tem que consultar o excelente trabalho de dissertação de Jorge Alam, que trata sobre isto). 

Daí que as discussões filosóficas sejam úteis apenas para usar a fala do outro em aperfeiçoar o próprio posicionamento; salvo, é claro, que o outro seja uma autoridade, alguém que ganhou na comunidade uma força tal, que obriga aos outros a se “esforçarem” por entendê-lo, simplesmente porque todo mundo está fazendo isso (um argumentum ad populum intelectual, a força das “comunidades”); assim, Deleuze, Arendt, Foucault, Agamben ou Quine merecem o esforço de compreensão (aqui o nosso interlocutor dirá que ele lê esses autores “criticamente”, que ele não aceita tudo o que esses autores dizem, etc; mas trata-se de discordâncias dentro do campo de concentração do respeito institucionalizado que da a esses autores o direito de serem os outros a se esforçarem; eles têm algo a dizer e se nós não entendermos, será culpa nossa); aqueles que não temos essa força política (em geral só patrimônio de europeus) estaremos submetidos sempre a que nos digam: “Você não tem uma filosofia, você não tem uma política, você não me entendeu”. 

* * * 

Gabriel, eu vou responder aqui teu e-mail particular, se permites, mas sem quebrar sigilos ou receios; por outro lado, creio que no texto “Políticas negativas” você achará respostas ou pistas para algumas das tuas questões. 

Há certas questões ligadas com Benjamim que interessem mais a você do que a mim, de maneira que eu não seria capaz de desenvolvê-las, porque não as entendo bem nem me interessam tanto quanto a você; você tem que escrever algum texto sobre isso, que é, eu creio, o que você está tentando fazer. Concordo com que “transformações sociais liberadoras envolvem uma mudança na experiência do negativo e não uma definitiva abolição do mesmo, em favor de uma vida mais comedida, talvez melancólica”; sem dúvida; mas acontece que as pessoas pensam – pela força da propaganda ontológica a que somos bombardeados, contra todas as evidências – que a vida humana é algo de bom, e elas querem “vivê-la intensamente”; eu creio que isto acontece em todas as classes sociais (o mais miserável sempre vai dizer que está tudo bem, e que é feliz); por isso fiquei perplexo quando você pergunta: “O obrigatório otimismo, alegria, gratidão, disponibilidade dos excluídos não seriam parte da estrutura mesma da opressão, constrangimento a partir do qual tudo pode ser feito deles? Inversamente, não podem ser o pessimismo, a tristeza, a ingratidão e a indisponibilidade resistência ao uso de alguém? Pareceria adequado pensar que sim”. Ué!!! E eu discordo disto? Eu concordo com cada linha disso; o que te levou a pensar que eu discordaria disso é precisamente a frase que você cita, e que afirma precisamente o que você diz!!! (A frase é: “Muitos burgueses pensam que as pessoas despossuídas são ‘mais felizes’ que elas (por estarem distraídas do ser-terminal a nível reflexivo), mas é precisamente dessa ‘felicidade’ que deveriam ser libertadas essas pessoas numa política negativa; trocá-la pela lucidez”. (A alusão aos burgueses é perfeitamente irrelevante; eis o problema da porosidade da linguagem, e do que chamo política de acentuações). Num esforço desesperado, reitero aqui a ideia: aos excluídos deixa-se um tipo de felicidade do qual temos que os liberar, porque essa felicidade é parte da sua exploração. Não concordamos nisto? Ou novamente entendi mal? 

Contrariamente ao que otimistas como Marcus Valério pensam, a felicidade é muito perniciosa. Mas este é um pensamento negativo muito sofisticado, disponível para qualquer um de direito, mas não de fato. Recentemente, um rapaz chamado Erivaldo me contatou; ele quer fazer um trabalho sobre a noção de resiliência vinculada com a ética negativa; ele estuda isso em relação com o acontecimento de Canudos, no final do século XIX; ele acredita ver no grupo de Antonio Conselheiro precisamente uma ética negativa, uma ética da melancolia e do despojamento, trágica e pessimista, com aceitação plenária do sofrimento e nenhuma conduta visando superá-lo. Talvez seria bom você ter contato com ele. 

Sim, eu penso que nossas vidas estão todas edificadas na imoralidade, que as sociedades não podem funcionar sem excluídos, que os excluídos não são um problema para o sistema mas aquilo que o faz funcionar; a exclusão é parte do funcionamento; os excluídos, é claro, não se conformam com isto e se insurgem de mil maneiras que não deixam de ser negativamente justas, já que são reivindicações do patrimônio negativo: a vida é sofrimento mas eu quero a minha parte disso; quero o sofrimento a que tenho direito, incluído o pessimismo estrutural luxo de classe, quero meu direito de ser infeliz, ao qual estou interditado na minha condição de excluído, na qual sou obrigado a ser “feliz” para poder suportar esta condição insuportável. A delinquência comum é um tipo de reivindicação negativa que a sociedade excluinte não pode permitir-se, embora outros tipos de delinquência não apenas sejam permitidos, mas são indispensáveis para que a sociedade caminhe, mesmo sem rumo. 

Tudo isto é terrível, e mais terrível ainda porque não podemos, num viés negativo, culpar ninguém moralmente por isso; é uma imoralidade que só podemos denunciar se nos mantivermos na superfície do humano; por isso digo que os “libertários” ainda acreditam no ser, no sentido de acreditar na distinção bem/mal: os maus são os misóginos, os homofóbicos, os anti-semitas, os intolerantes; os bons são os contrários; o ser está num lugar, e há os inimigos do ser. Mas os motivos para lutar contra os homofóbicos ou os misóginos são perfeitamente absurdos, tanto quanto o que combatem; numa abordagem de política negativa haverá que engolir estas pílulas; num mundo animal não há reais negociações, mas, em todo caso, violência negociada; haverá, simplesmente, que se defender, mas sem querer colocar a “virtude” do próprio lado, porque o ser, a vida, não está, como Milan Kundera disse, “em outro lugar”, mas em nenhum lugar. 

Não creio, pois, que tenhamos razões para lutar pela justiça; apenas inventamos isto quando algo nos é insuportável e depois racionalizamos. Não há nenhuma opção pela vida que possa ser sustentada como ética; ai entra a política (Dussel me acusa de adotar a concepção maquiavélica da ética como totalmente desvinculada da política). A política é a suspensão da interdição total do heterocidio e da procriação; a política é geração e destruição; ou seja: violência! (Não quer dizer que a ética esteja desprovida dela, mas, em todo caso, será uma violência suicida). Não há problemas em entender assim a política; o complicado é pensar numa política justa; no viés negativo, você terá que estar preparado para ser destruído pelos excluídos que você liberou (como no famoso romance-filme, “Tempo de viver, tempo de morrer”, ou no caso do libertador San Martín, que sempre cito). Ninguém vai te agradecer; e se você tomar o poder (como De Gaulle ou Lula), você irá se desgastando (pelo efeito da terminalidade). 

Não creio que exista alguma possibilidade de plenitude que seja implementável no plano social (e isto ressoa no fundo da tese lacaniana de Ernesto Laclau, da “impossibilidade da sociedade”; mas a dele é uma ideia mais complexa). Sim existe a plenitude individual – que nem a filosofia nem a ciência trazem, mas sim a arte, o cinema – mas isto não pode ser levado para o social (a decepção de Godard diante do cinema, pelo fato dele não ter cumprido sua missão política; mas ele e muitos outros fizeram muitas obras-primas). Por isso Adorno via a luz da liberação muito mais em Alban Berg do que em Marx. 

Bom, Benjamim. Ele é um filósofo negativo, e é negativa a ideia de que não deveríamos nos espantar dos horrores do mundo, mas apenas vê-los como decorrência do que há e tentar pensar um conceito de história que capte isso; vejo isso problemático; creio que o que produz o horror humano diante do qual não deveríamos nos surpreender, é uma estrutura que é encenada de diferentes formas na história, mas que não é histórica ela mesma; eu sei que isto é um pecado mortal em nossa época, admitir que há algo não afetado pela historicidade, embora se encene de variadas formas na história; para ser, os humanos precisem se excluir, e por isso não pode haver uma luta dos excluídos por ser, sem isso ser a morte de outros, e inclusive do seu próprio libertador; é bom que o humano tenha um pé em sua singularidade kierkegaardiana, não negociável por nenhum sistema hegeliano, para ele poder fugir quando os que ele ajudou o busquem para matá-lo (não porque sejam maus, é claro, mas porque eles pensam que a vida é boa e querem “vivê-la intensamente”). O diretor canadense Denys Arcand disse que a vida o decepcionou de tudo, do marxismo, dos ideais revolucionários, da moralidade dos homens, etc, de tudo...menos do seu cinema, dos filmes que conseguiu fazer. Este é o único caminho (e não Cristo): filmar o horror do real – mesmo em comédias como “Tempos modernos” de Chaplin - na impossibilidade de mudá-lo. 

Também para a ética negativa a suposta “exceção” é na verdade a regra; não há um mundo bom que foi corrompido por um mal estranho e adventício; o que chamamos de mal é simplesmente o ser. O que temos aqui para ser negociado? A estrutura terminal do ser é inegociável em sua surgência, é claro, e tentando submetê-la à negociação os humanos têm se destruído mutuamente ao longo de toda a sua história: pois ninguém – nem os judeus, nem os homossexuais nem os homofóbicos – têm a culpa da terminalidade do ser; o que pode ser negociado são os valores intra-mundanos; mas apenas no registro do animal político que somos todos (não apenas os humanos, como disse na mensagem anterior); as vidas humanas em sociedade são distribuições mais ou menos bárbaras do patrimônio negativo, submetido às mais diversas simbologias, religiosas antes, hoje, por exemplo, pragmáticas e linguísticas. A diferença com Benjamim é que eu não acho que o suposto “estado de exceção” seja a regra apenas para os excluídos, mas para todos. Os excluídos sofrem uma dimensão dessa regra mal considerada excepcional, e os que excluem sofrem outras dimensões; mas o ser é impossível para todos; por isso é que toda ideia de uma política justa é metafísica. Não pode haver justiça no viver; e talvez nem mesmo morrendo. 

Então, o caminho da política tem que ser um caminho de des-radicalização do pensamento, o que não forçosamente faz recair no afirmativismo selvagem. Ou aceitar que nosso pensamento seja ultrapassado pelas nossas ações: nos sensibilizamos diante do sofrimento e da miséria bem antes de conseguir justificar tal sentimento; mas não há nenhum motivo para lutar por nada nem por ninguém; teremos que inventar tudo isso; inventar a justiça. Não entendi bem essa frase: “Eu gostaria de ver a política negativa repensar os termos dessa normalidade de perspectiva que você lhe atribui” (?). Você poderia esclarecer? Por que você acha que eu parto “de uma perspectiva normal e justa”?? Eu creio que há a impossibilidade, o horror, a injustiça, mas sem que tenhamos que pensar por contraste um estado de coisas bom: precisamente, o lugar da degradação é o ser, só que não há “degradação” (nem mal, nem injustiça), mas simplesmente o ser. E o ser não pode ser revolucionado; a ética negativa recomenda não matar ao outro por causa disso, mas a política negativa pode ficar liberada dessa obrigação. (Daí minha alusão à Fanon; eu não sou em absoluto em favor da violência; apenas afirmo que você não pode desenvolver uma “ética da vida” e rejeitar a violência - Nietzsche). 

O copo de água se transforma para o pobre numa dádiva, mas não em contraposição a um mundo belo que teria água para todo mundo à vontade. O copo de água é um lugar eventual de carência e exploração, de violência e exclusão, que seria ocupado por outra coisa (o transporte, a moradia, o trabalho) se tivesse água para todos; algo tem que ser excluído para que o resto funcione; se não for água, será outra coisa. E, contra as teodicéias, os humanos não têm culpa disso, eles não estragaram algo muito belo que Deus lhes deu; se Deus existisse, Ele seria plenamente culpado de todos os males do mundo; mas Ele teve, pelo menos, a decência de não existir. 

Abraços, Julio Cabrera.

2 comentários:

  1. Gabriel Silveira de Andrade Antunes4 de outubro de 2012 às 15:10

    Julio,

    Eu não sei quanto tempo faz que você postou essa sua resposta para mim. Hoje por acaso, dia 04/10/12, encontrei sua mensagem e a li. A leitura dela reforçou uma impressão que vinha se construindo em mim de que minhas objeções (ou, menos que isso, minhas resistências) às suas ideias não estavam bem pensadas. Terminei a leitura com a viva impressão de que não tenho objeções.

    Quanto a minha frase “Eu gostaria de ver a política negativa repensar os termos dessa normalidade de perspectiva que você lhe atribui” com ela eu queria sugerir que haveria uma certa presunção na postura de enunciação de ser, a perspectiva negativa, uma perspectiva normal e justa. Parecia a mim um violento afirmativismo, digo, uma postura que admite um ser conhecedor em oposição estrita à ignorância, mas eu mesmo não penso mais por aí e acho que eu embaralhei as questões. Vendo o quadro todo de sua resposta, me pergunto se não seria a minha própria presunção a lhe atribuir esse papel e me pergunto se, fazendo essa observação tangencial não fico desatento ao que de fato está em questão.

    Abraços,

    ResponderExcluir
  2. Gabriel Silveira de Andrade Antunes4 de outubro de 2012 às 15:28

    Ah, e estou interessado no trabalho do Erivaldo, em ter contato com a busca dele...

    ResponderExcluir