Gabriel Silveira de Andrade Antunes
*
Membro do Grupo Fibral
1.
O caso
Maugüé e a formação da cultura filosófica uspiana revisitada
O fato é que o hábito suspensivo de deixar falar o próprio texto,
ressaltando-lhe a armação interna em detrimento de seu valor de verdade –
resíduo naturalista desprezível -, era não só um convite à timidez metodológica
(prima pobre da dúvida cartesiana), mas uma verdadeira escola de inibições. A
ascese em que redundava a interpretação ad mentem auctoris, bem como o interdito da objeção dogmática (sempre intempestiva), eram
por certo virtudes profiláticas porém dormitivas, a ponto de paralisar o
espírito, suprimindo a distância (e o Método pedia identificação) sem a qual
ele não sobrevive.
[Paulo Eduardo Arantes]
Paulo
Arantes apresenta a formação da cultura filosófica uspiana, que remonta às
missões francesas dos anos trinta do século passado, como uma “reviravolta
decisiva em nossa malsinada dependência cultural” (1994, p. 61). Ainda segundo
Arantes (1994), era então implementada uma prática filosófica de formação
rotineira e organizada, centrada na leitura cuidadosa dos textos clássicos da
filosofia como antídoto ao diletantismo, ao filoneísmo e à adivinhação que
caracterizariam as práticas anteriores. Personagem fundamental dessa
transformação, o normalien Jean
Maugüé (2014), num artigo intitulado O
ensino de filosofia e suas diretrizes, procurou estabelecer as condições
para o ensino filosófico na USP segundo a fórmula kantiana de que só se ensina
a filosofar. Paulo Arantes (1994) entende que Maugüé aí engendra uma
articulação entre a máxima kantiana e a tradição universitária francesa,
orientando no sentido histórico o ensino filosófico do estabelecimento, uma vez
que a leitura dos clássicos com critério e sentimento era concebida como o
único meio para se aprender a filosofar. Respondendo aos defeitos referidos acima da vida cultural brasileira, Maugüé assim
formulou a tarefa do professor de filosofia:
Parece-nos que a tarefa do professor de filosofia, no
Brasil, consiste em não esquecer as ideias novas, mas principalmente em
situá-las lealmente, modestamente, no conjunto da perspectiva filosófica. É
preciso não ter medo de passar por "clássico", ou por
"elementar"... É preciso que nos recusemos esse prazer de parecer
renovadores, de ser ultra modernos... O que é necessário é suscitar, avivar, no
estudante, o senso da reflexão e das ideias gerais: em suma, criar o
discernimento. (MAUGÜÉ, 2014)
Como
admite por várias vezes Arantes, as diretrizes de Maugüé de um ensino de
filosofia voltado à leitura dos clássicos deixaram uma profunda marca na
cultura filosófica uspiana, marca que seria ainda intensificada pelos capítulos
seguintes da missão francesa. Avaliando positivamente a proposta de Maugüé,
Arantes a toma como “um oportuno entrecruzamento de rotina europeia e carência
colonial, – a medida
profilática em condições de peneirar os bandos sucessivos de ideias novas que
periodicamente feriam o espírito vibrátil de nossos letrados” (1994, p. 74).
Causa-nos,
porém, estranhamento essa avaliação de Arantes, posto que a própria rotina
europeia implantada – o Departamento
Francês de Ultramar – pode ser muito bem entendida como um desses artigos
importados que atingem violentamente nosso tênue meio intelectual. Essa
implantação de toda uma “usina” de produção importada, como, por sinal, o
próprio Arantes indica em outra passagem (1994, p.61), lembramos estar também
associada, como no caso de outros empreendimentos desenvolvimentistas
transnacionais, no descarte de outros esquemas produtivos (passado da filosofia
no Brasil, IBF) que são dispensados em favor daquele mais moderno. É no mínimo
paradoxal que a importação de um modo de articular os estudos filosóficos (o
que é muito mais do que importar doutrinas específicas) seja tomado como
antídoto ao filoneísmo frente aos produtos da inteligência europeia. A partir
das missões francesas parece haver uma passagem bastante importante entre
procurar ter acesso às novidades filosóficas de além mar e, depois, procurar
ser como os filósofos de além mar (no caso, especificamente aqueles da
universidade francesa). Penso que, efetivamente, pode ser ainda maior o perigo
representado pelo transplante do modus
operandi da academia francesa para os desdobramentos da dependência
cultural local, posto que por ele são adicionadas novas formas de dependência aos
maus modos (seguramente não
completamente extirpados) dos que se acotovelavam pelo saber da última novidade
filosófica.
No
sentido de orientação das práticas locais, a exigência de recuo histórico na
formação do discernimento pretendido por Maugüé é certamente uma poderosa
ferramenta de disciplinamento na apreciação de obras filosóficas. O mestre francês
assim o compara ao uso das estrelas fixas para a navegação oceânica: “Os filósofos clássicos são os pontos fixos da
história. Se o presente não se situar exatamente em relação ao passado, será como
um navio que perdeu a rota” (MAUGÜÉ, 2014). Essa temporalidade da
filosofia referida rigorosamente ao seu passado clássico (europeu), aludida por
Maugüé como a referência fixa de orientação da filosofia, vincula o ambiente
filosófico brasileiro à continuidade da temporalidade do pensamento europeu.
Com isso, essa academia brasileira acharia seu rumo pelo alinhamento preciso
com relação à tradição europeia. Defendo que o interesse desse vínculo para a
emancipação da mencionada dependência cultural precisa ser avaliada
cuidadosamente. Essa temporalidade que me incita desconfiança é, no entanto,
descrita nas palavras de Arantes deste modo:
(...) não estávamos entrando pela porta dos fundos mas
pela via real da modernidade filosófica, não tanto a temática quanto a formal.
Pois essa condição moderna do
discurso filosófico começou por implicar, entre outras coisas, sua conversão
aos problemas técnicos na medida em que a Razão Pura (...) dobrava-se
metodicamente sobre si mesma (1994, p. 78).
Prefiro,
por ora, não dizer qualquer coisa contra a ideia de que pelas diretrizes de
Maugüé entremos na filosofia pela via real da modernidade, salvo questionar se
um discernimento formado junto a uma tradição distinta da europeia teria de ver
isso assim positivamente como vê Arantes e como via Maugüé. A apreciação feita
da invasão europeia pelos povos originários da chamada América (e ainda por
europeus que não estavam interessados diretamente na exploração material do
continente, como Bartolomé de Las Casas) não é de gratidão pelas benesses por ela concedidas, ou dócil
diante dos processos políticos a ela relacionados. Vejo o estabelecimento
modernizador e profissionalizante do pensamento filosófico, no caso
representado pela formação da USP e desdobramentos, como continuidade do
despojo colonial promovido especialmente pelos próprios colonos. Esse
acontecimento junta aos séculos de inteligência local pautados por uma assumida
centralidade da Europa exigências e expectativas novamente orientadas para as
metrópoles. A despeito de suas boas intenções, pesa que Maugué não considera
que as referências para avaliar o nosso próprio percurso cultural podem não ser
as mesmas que as dele, e que aquelas referências porventura compartilhadas com
a Europa tampouco tem de ter o mesmo valor nas perspectivas a construir daqui. É
preferível, no entanto, aliviar essa advertência com relação ao mestre francês
e conferir a maior parte do peso desse equívoco aos seus discípulos. Os
descaminhos que se oferecem por um assentimento eurocentrado às lições de
Maugüé e demais integrantes da missão francesa são responsabilidade, antes de
tudo, nossa. Por outro lado, que se dê a possibilidade de perspectivas
latino-americanas construírem de outro modo o passado da filosofia, valorarem
de modo diverso desde sua condição obras, conceitos, períodos da filosofia
europeia (e de onde quer que seja) não deve ser visto como ficando devendo à
universalidade da filosofia. Pelo contrário, antes ficaria devendo à
universalidade a posição que se construísse sobre a necessidade da exclusão de
perspectivas específicas na constituição do que seja uma atitude universalista
quanto à história da filosofia.
Arantes,
apesar de louvar repetidamente os méritos do tratamento iniciado por Maugüé,
reconhece também alguns revezes da implantação desse esquema de trabalho. Entre
eles, aquele “de até hoje confundir-se nos meios uspianos filosofia e
explicação de texto” (ARANTES, 1994, p. 75). Curiosamente, porém, seria mais
adequado atribuir essa falha à apropriação particular que foi feita do trabalho
de Maugüé, pois essa linha que Arantes remonta àquele professor francês frustrou
parte essencial de sua prática, de sorte que se estabeleceu exclusivamente uma
produção acadêmica altamente técnica, voltada unicamente aos “textos
filosóficos” (hoje preferencialmente e não exclusivamente aos clássicos) e que
tornou o mencionado procedimento profilático e formativo um estado permanente
de reprodução dos estudos da área. Arantes recolhe em seu livro vários
testemunhos que dão conta de Maugüé como um mestre notável, que impressionou
vivamente inclusive Oswald de Andrade, cuja retórica combinava, em suas aulas,
a exposição cuidadosa do pensamento de filósofos clássicos e contemporâneos com
a consideração de aspectos da vida cotidiana. Segundo Antônio Cândido, Maugüé
“tencionava principalmente nos ensinar a refletir sobre os fatos” (in: ARANTES,
1994, p. 65). Sua atitude voltada ao concreto, que admitia a filosofia proceder
por alusões (já que, ainda seguindo Kant, não tinha domínio próprio) e buscava
dar conta com a reflexão da experiência do mundo à sua volta, segundo Arantes
(1994, p. 84), não teve legado na cultura uspiana. É mesmo impressionante
encontrar daquele que é reputado por Arantes como pai fundador do departamento
de filosofia da USP afirmações de teor tão longínquo da postura de muitos dos
técnicos da inteligência filosófica de hoje quanto estas:
Não é corajosamente filósofo senão aquele que cedo ou
tarde expressa o seu pensamento acerca das questões atuais. Aliás, nada mais
atual do que o Platão do III século antes de Cristo e o Descartes do século
XVII. As próprias vicissitudes de suas existências dão testemunho de um caráter
concreto que não devemos esquecer. (MAUGÜÉ, 2014).
Insistindo
ainda em alguns aspectos do caso Maugüé,
buscando mais definição no que representou a ruptura com parte do seu legado,
salientamos que Arantes (1994, p. 66) registra o que lhe parece uma flagrante
injustiça: para alguns como Ruy Coelho, o sucesso de Maugüé na USP do final dos
anos trinta do século XX foi mais um sintoma da má formação do meio acadêmico
de então, que não percebera sua relativa falta de profundidade, ainda marcado
por algum diletantismo de um período de formação artesanal, posteriormente
entendidos pelas gerações mais técnicas como tal. No sentido contrário de Ruy
Coelho, Arantes (1994, p. 81-3) considera o estilo de Maugüé bastante moderno,
aproximando-o do existencialismo francês por sua atitude voltada ao concreto e
suas exposições aproximando-se da forma que Lukács definiu como sendo o ensaio.
Considerando o estilo em tela, sua condição de solidez seria enunciada por
Maugüé (2014) como a filosofia pressupor a aquisição de “uma cultura vasta e
precisa” de que precisa para seu exercício reflexivo. Tal cultura vasta era
entendida à europeia, segundo Arantes (1994, p. 83), e sua aquisição nesses
termos não teria sido viável, ao menos para qualquer um. Arantes parece considerar
difícil encontrar esse sistema de reminiscências culturais que servem à
reflexão filosófica “nestas paragens de desencontro permanente entre vida
intelectual raquítica e processo social pouco diferenciado” (1994, p. 83). Uma
vez que esse “equilíbrio de rotina (...) e fantasia ensaística, enquadramento
técnico e interesse político-cultural” (1994, p. 83-4) não se mostrou
acessível, quebrou-se a unidade do projeto de Maugüé, sobressaindo assim
exclusivamente do legado do mestre “o esforço necessário para normalizar uma
técnica intelectual” (ARANTES, 1994, p. 82). Desse modo, foi conservado somente
“do programa de cultura filosófica delineado por Jean Maugüé (...) as óbvias
vantagens propedêuticas do apego exclusivo à letra miúda dos clássicos, explicados
segundo os métodos rigorosos e perfeitamente modernos da História da Filosofia”
(ARANTES, 1994, p. 84).
O aspecto técnico de
leitura dos clássicos de Maugüé ganhou considerável força com Martial Gueroult
e a continuidade da missão francesa na USP. Arantes (1994) indica que a
linhagem historiográfica da filosofia francesa então implantada no Brasil teve
destacada apenas a promessa de progresso técnico, o qual teria mesmo sido
efetivo no contexto local. A recepção dessa linha historiográfica na USP se
deu, ainda segundo Arantes (1994), deixando de lado o que seriam pressupostos
espiritualistas retrógrados daquele método que, no entanto, tinha “o mérito de
restituir à filosofia o seu passado, anulado pelos diversos historicismos”
(1994, p. 113). O trabalho do professor Ubirajara Marques, A escola francesa de historiografia da filosofia, contribui para a
apreensão do sentido dessa restituição do passado da filosofia à sua
contemporaneidade, considerando brevemente a gênese e as elaborações dessa
escola que tem em Boutroux, Bréhier, Gueroult e Goldschmidt alguns de seus mais
destacados membros. O pretendido caráter inesgotável e atemporal dos clássicos
da filosofia europeia tinha explicação, para essa corrente, na descrição de
Arantes, “no único absoluto admitido por tal história da filosofia, o princípio
da vida espiritual que elas encerram, a intuição geradora que as suscita e elas
por seu turno encarnam” (1994, p. 113). Arantes vincula a escola de
historiografia da filosofia francesa de Gueroult aos “longínquos descendentes
de Victor Cousin” (1994, p. 111).
A análise proposta no
livro de Ubirajara Marques é contrária à vinculação sem muitas nuances entre a
escola de historiografia da filosofia francesa, o ecletismo e um espiritualismo
retrógrado e fortemente metafísico, como encontrado na seção “O essencial de uma filosofia é uma certa
estrutura” do livro de Arantes (1994). Em A escola francesa de historiografia da filosofia temos uma
consideração mais detalhada das ligações e das rupturas entre ecletismo,
espiritualismo e a corrente que surgia de historiografia da filosofia, entre
meados do século XIX e começo do XX. A imagem que resulta do trabalho de
Marques compõe, efetivamente, em favor de um quadro no qual a escola da qual
provinha Gueroult seja encarada como moderna e bastante consequente às
transformações impostas pelos limites da razão, como entendidos a partir de
Kant, ainda que o próprio Marques lhe apresente algumas críticas importantes.
Com relação à ligação entre a dita escola e Cousin, Ubirajara afirma contra
Arantes que: “filósofos e historiadores da filosofia, nem sempre concordando
sobre quem tenha principiado a história da filosofia rigorosa na França, são
unânimes pelo menos ao rejeitar Cousin” (2007, p. 54). Em termos gerais, o que Ubirajara
Marques (2007, p. 131) vê se passar entre o ecletismo de Cousin e a moderna
historiografia da filosofia francesa, que permitiria ainda algumas
aproximações, é a passagem de uma ênfase doutrinal da primeira para uma ênfase
exegética da segunda, sem com isso se anular seja exegese na primeira, seja
doutrina na segunda. Nesta ruptura com o ecletismo, Lachelier e Ravaisson
teriam sido personagens fundamentais, representando o primeiro uma
contraposição socrática com a leitura oficial e conciliadora das filosofias de
Cousin, enquanto com o segundo se tem o avanço de um profissionalismo
institucionalizado contrário ao forte personalismo daquele influente líder do
ecletismo. Nesse sentido, com Lachelier “aprendeu-se a ler os grandes clássicos
e criticá-los em se partindo não das próprias ideias em relação a si, mas das
suas ideias em direção a eles” (DURIAC in: MARQUES, 2007, p. 55). Essa leitura
investigativa de Lachelier (que entendo como sendo fundamentalmente uma leitura
interna avant la lettre) não submetia
os textos dos filósofos clássicos à síntese em voga do ecletismo (então espécie
de doutrina oficial do Estado francês), o que marcou para Marques “uma tríplice
ruptura: com a diretriz oficial; com a orientação filosófica; com a corporação
dos que gravitavam ao redor de Cousin” (2007, p. 56). No entanto, Ubirajara
Marques faz notar, com auxílio de Gueroult, que aqueles alunos de Cousin
(Ravaisson e Lachelier), ainda que se afastando do sistema eclético, “comporão ainda com a ideia de ‘perennis philosophia’, efetuando o
sincretismo das doutrinas” (MARQUES, 2007, p. 59).
Para passar a análise
das características metodológicas da supracitada escola historiográfica e
filosófica, voltemos às propostas metodológicas de Lachelier. Encontramos assim
o pensador indicando como caminho a seguir:
(...) o estudo direto, paciente e dócil dos mestres
gregos, franceses e alemães (...). A filosofia não é mais uma coisa a inventar;
ela está feita, toda inteira nas suas obras; o que cada um de nós pode chamar
de a sua filosofia é só a sua maneira de interpretá-las (LACHELIER in: MARQUES,
2007, p. 59-60).
O quadro mais amplo em
que é proposto compreender a concepção de filosofia exposta acima por Marques
(2007) é o de ascensão da ciência e de retraimento da filosofia na segunda
metade do século XIX na França, tomando por fechado o caminho da metafísica
como queria Kant, fazendo com que a filosofia se volte para sua própria
história. Lachelier teria, para Marques (2007, 109-110), indicado aos futuros
historiadores da filosofia franceses a necessidade de renunciar à antiga e
esgotada forma metafísica de fazer filosofia “como instauração sistemático-abstrata
do mundo”. Ainda seguindo essa retomada de Kant na França, temos que Boutroux,
aquele considerado como o fundador da história da filosofia objetiva na França
por Gueroult (cf. MARQUES, 2007, p. 108), toma por um divisor de águas da filosofia
francesa o estudo de Kant por Janet na Sorbonne, no ano de 1867. Esse eclipse
do teorético-dogmático, como entendido por aqueles pensadores franceses que
estabeleceram a escola de historiografia de que tratamos, que Arantes (1994)
situa como as raízes mais profundas e significativas da cultura crítica
uspiana, parece-nos ser, seguindo a argumentação de Ubirajara Marques,
justamente a matriz daquela mudança de ênfase já mencionada do esforço
doutrinal para o exegético. A filosofia passa a ser tratada como uma série de
doutrinas cuja originalidade permanece, no entanto, objeto de interesse em seus
embates. O método desse estudo será, para Boutroux (cf. MARQUES, 2007, p.
110-1), num sentido análogo ao que caracteriza as ciências empíricas em Kant, o
de tomar as obras como objeto da experiência e somar a essa observação o
raciocínio. Tal raciocínio, uma vez que se insere num exercício de
interpretação, estaria já determinado pelo autor da obra, de modo que “a
aplicação desses princípios ao método histórico resume-se no preceito de sempre
raciocinar do ponto de vista dos próprios autores” (BOUTROUX in: MARQUES, 2007,
p. 111).
Vale salientar que esse
raciocínio do intérprete segundo o ponto de vista que teriam os próprios
autores deve ser assumido, para Boutroux (cf. MARQUES, 2007, p. 115), numa
relação vivificante, que vá além de uma postura imparcial que só poderia ser
mantida se a filosofia que se têm frente aos olhos – uma obra filosófica – não
fosse também tomada como uma investigação presente. Essa relação vivificante é
o elo que se pretende estabelecer entre estudo do passado da filosofia e o
filosofar, aquilo que tornaria filósofo o historiador da filosofia. O que está
em tela aqui, buscando sintetizar o percurso de Marques (2007, p. 108-120), é o
difícil estabelecimento do interesse no estudo das doutrinas filosóficas
pré-kantianas consideradas as consequências da interdição da metafísica, no que
Boutroux, Robin e outros buscarão salientar esse interesse não mais no
especulativo, mas no elemento prático da razão – redundando na busca de
“disposições filosóficas”, da “ação espiritual”, de um “fundo comum e
autárquico da reflexão” e assim por diante. Entendo que a proposta que se
alinha entre Boutroux e Gueroult, a partir da leitura de Arantes (1994) e Marques
(2007), quanto ao interesse filosófico do estudo da história da filosofia
consiste em que, ainda que seja impossível às filosofias metafísicas atingir a
verdade quanto aos seus inatingíveis objetos, interessa ao pesquisador a
inspiração que representa a particular aspiração à verdade que se encontra
naquelas obras como elemento prático, sendo por meio disso que se daria o
exercício filosófico, ativo, de tal estudo histórico.
Essa vinculação entre o
passado cronológico tomado por contemporâneo no pensamento é tomada por
Guillaume Coqui no artigo Quel genre
d’histoire convient à la philosophie? como índice característico da
distância entre a história da filosofia e o fazer da disciplina história[2].
Com a ênfase bastante comum da história da filosofia na leitura interna de
hermenêutica caridosa, se expressa uma oposição das exigências epistemológicas
entre a história (como concebida por um Lucien Febvre) e a história da
filosofia. Essa oposição se enraizaria no fato de que “nós [historiadores da
filosofia] desejamos aprender dos filósofos
e não somente sobre eles” (COQUI,
2009, p. 88. Tradução minha. Grifos do autor). Coqui (2009) defende o interesse
de manter estudos históricos da filosofia no sentido mais habitual, este em que
se busca aprender dos filósofos, mas igualmente argumenta pelo desenvolvimento
de estudos históricos dos filósofos que os tome de modo similar ao que faz a
disciplina história com seus objetos, considerando fortemente os contextos
históricos e tomando suas obras em forte relação com esse contexto, não as
lendo obrigatoriamente pelos elementos internos a sua doutrina, o que
corresponderia a aprender sobre eles.
No artigo de Guillaume
Coqui encontra-se uma tensão interessante entre um gênero de história da
filosofia que o mesmo apresenta, o crítico, e o que ele toma como sendo aceito
como o ofício mesmo do historiador da filosofia, isto é, que “um autor deve, à
princípio, ser compreendido [...] segundo seus próprios termos e em função dos
problemas que ele podia se colocar” (COQUI, 2009, p. 87. Tradução minha). Como
se pode ver, esta orientação que Coqui toma como usual do ofício de historiador
da filosofia corresponde, em linhas gerais, com o apresentado acima sobre a
escola francesa de historiografia da filosofia. Coqui (2009) considera como
alguns exemplos do referido gênero crítico de história da filosofia os
trabalhos de Foucault, Gadamer e Heidegger, que trazem um julgamento da
tradição junto aos projetos filosóficos que desenvolvem. Sua condição de
compreender os autores da tradição numa relação complexa com o projeto
filosófico crítico que é assumido rompe com a orientação direta de ler os
autores segundo seus próprios termos, de modo que, quando feita com talento,
essa operação nos faria aprender simultaneamente do autor então estudado e do
modelo histórico mais vasto assumido em que são inseridos, num cruzamento de
termos e problemas entre projetos.
Fazendo uma apropriação
imaginativa, voltando à questão do elemento ativo em história da filosofia e
reconduzindo a discussão aqui proposta, parece que se desenha nesse gênero
crítico de história da filosofia uma perspectiva diversa (mas não exatamente
oposta) àquela da escola de historiografia da filosofia francesa, como
desenhada por Marques (2007). No lugar de ser mediante o estudo do passado da
filosofia que se atualiza o filosofar como historiografia, tem-se, aqui, que o
filosofar atualiza o passado gerando historiografia. Com uma manobra algo
brusca, seguiremos por algumas associações que nos trazem, novamente, à
academia brasileira (o que, apesar desse longo desvio francês, sempre foi nosso
problema).
O que fazer das missões francesas?
Porque o temor que me assalta é que, levados pela nossa segura
consciência de que a Filosofia se alimenta continuamente de sua história,
tenhamos ido longe demais na prática da orientação historiográfica.
[Oswaldo Porchat Pereira]
A expectativa do que se
supõe progresso da filosofia no Brasil consiste no aprofundamento técnico e
rotineiro, em meio institucionalizado e autônomo de especialistas,
reivindicando um senso crítico ilustrado no que há de consagrado na filosofia
europeia. A constituição da cultura filosófica uspiana, cultura
progressivamente tornada condição vigente (quando menos, meta) dos estudos
filosóficos universitários no país e que representa a mencionada expectativa,
se deu com forte influência da escola francesa de historiografia da filosofia
e, de modo mais amplo, da academia francesa e de suas tendências. Arantes
(1994) considera que essa implantação teria redundado numa reviravolta de nossa
dependência cultural – o que nos parece, como visto acima, muito suspeito –,
submetendo as novidades de além-mar, antes ansiosamente consumidas, ao crivo de
um julgamento histórico e crítico formado por meio de estudos rigorosos e
ordenados. A história da filosofia e seu método de leitura estrutural de textos
são os elementos constitutivos dessa formação, os quais remontam à retomada de
Kant na França a partir de meados do século XIX e às transformações que tal
retomada provocou nos estudos históricos da disciplina.
Nesta seção pretendo
apresentar movimentos de apropriação, crítica e resistência ao que se vê
implicado na temática metodológica dos estudos filosóficos, reconsiderando o
apresentado nas seções anteriores. O que aqui tracei pode ser relacionado à
seguinte pergunta: o que fazer agora do que fizemos de nós
querendo seguir às missões francesas? A retomada do passado da
filosofia será abordada como questão de interesse num terreno onde cumpre papel
destacado condições latino-americanas em conflito por ocasião do colonialismo.
Pretendemos considerar o enfrentamento desse problema para além de um mero
legado técnico de leitura de textos europeus, buscando um sentido político para
a escrita de história de pensamento europeu e formação de uma academia de
filosofia em torno da referida técnica. Com isso, penso ser necessário, ainda,
apropriar-se das missões francesas reconsiderando seu legado no sentido da
discussão filosófica da historiografia da filosofia, e não, tão somente, como
implementação de programa historiográfico, seja como instrumento de formação
filosófica ou como expediente permanente de pesquisas. Na sequência, ainda
nesta seção, trataremos daquilo que orienta estas considerações: a recusa em
deixar a filosofia pacificamente situada como um assunto que advenha (milagrosamente) somente da cultura
europeia.
Retomando, então, a
temática do que fazer das missões francesas, afirmo que deveríamos ter
aprendido com o ofício de historien
philosophe, através do aprofundamento técnico da formação que ela
significou localmente, o apreço pelas
doutrinas, pela aspiração à sabedoria, de onde quer que elas viessem. Tomou-se
no Brasil esse apreço pelo passado da filosofia precisamente enquanto definido
nos termos dessa missão francesa, o que significa, ainda hoje, uma muito
frequente condição de isolamento – e até de sectarismo – dos herdeiros dos
rigores daquela instituição. Não aprendemos a, como os mestres franceses,
definir ativamente os termos de nossos vínculos com o passado, como por sinal,
me parece, tampouco fazemos quando se trata de construir projetos de futuro.
Essa circunscrição profilática da filosofia, que se toma como um frágil
recém-nascido que cumpre proteger de contaminações, se traduz no apreço
exclusivo aos clássicos europeus ou ao “propriamente filosófico” (bordão dos
acadêmicos tradicionalistas que a nada acrescenta salvo ao seu próprio
fanatismo) e parece do ponto de vista prático lastreado por uma ingênua
concepção das obras do cânone do pensamento europeu, tomadas como filosóficas
porque são da História da Filosofia e
se pretendendo de toda leitura rigorosamente leal aos seus propósitos e
rigorosamente modesta nas próprias pretensões como um exercício responsável,
interessante e recomendável de filosofia. As próprias qualidades do rigor e da
responsabilidade, concebidas nos termos dos interesses de reprodução do estado
atual da academia, se encontram elevadas a imperativos absolutos, como se não
fosse adequado avaliá-los com relação ao que conduz a eles e ao que implica
deles. Tomando um exemplo, age-se como se não fosse relevante a possibilidade
de ser responsável com relação a (supostos) deveres que mereceriam não ser
obedecidos, ou como se não fosse significativa a possibilidade de ser rigoroso
a ponto de não permitir nenhum risco mais frutífero ao pensamento que o por
vezes demasiadamente estreito caminho do rigor. Isso sem considerar o que é
tido por rigor, tomado tantas vezes como uma atitude excessivamente voltada às
informações, como se fosse filosofar ofício de jornalista aplicado e obcecado
nos fatos, importando menos a articulação argumentativa ou a aplicação
significativa operada nos textos que se escreve na academia.
Insistindo na questão
do que deixamos de apreender, digo que no lugar de se aprender com a prática da
missão francesa a enriquecer o nosso ambiente intelectual, o que vejo em
prática hoje nos departamentos de filosofia brasileiros é, mimeticamente, fazer
o que eles fazem para enriquecer o ambiente intelectual deles. Paralelamente a
isso, ouve-se o reiterado lamento da pobreza do nosso ambiente intelectual, de
sua estreiteza, de seu atraso, tudo isso esperando que o valoroso exemplo que
vamos e vamos copiando, porque o copiamos, vá nos valorizar. É trivial, mas
necessário dizer, que não é necessário que algo que sirva sob certas
circunstância para um propósito, sirva para um propósito até certo ponto
análogo em circunstância distintas. A leitura interna da tradição filosófica
europeia, ainda que enriqueça o ambiente filosófico europeu, não
necessariamente enriquece o nosso ambiente, pelo menos não em todas as
dimensões que se poderia aspirar enriquecer nem oportunamente com relação a
tudo que se passe num determinado momento, uma vez que não estejamos
patologicamente e imaturamente frustrados por não sermos europeus. Tudo isso é
agravado enquanto essa prática é quase totalmente exclusiva – seria melhor,
até, pensar que ela é totalmente exclusiva, para não dar margem a se escapar do
problema dando ênfase às (louváveis) exceções. Dito de outro modo, acontece que
essa prática bem instituída em nossos meios acadêmicos pode até somar aos
esforços dos europeus, oxalá de modo bastante significativo, e permanecer (como
vem acontecendo) indefinidamente pouco significativa na sua inserção local.
A reintrodução da
filosofia no ensino médio, um evento que pode parecer começar a transformar o
quadro de isolamento da filosofia acadêmica com relação ao conjunto da
sociedade no Brasil, apesar de causar interessantes (porém discretas e sempre
problemáticas) mudanças nas escolas – algumas das quais tenho vivência pessoal
–, encontra certamente seus maiores desafios em não exigir dos alunos que eles
sejam já inseridos ou ao menos atraídos pela cultura europeia para que o estudo
da disciplina tenha interesse. Em termos bastante concretos, penso que o ensino
de filosofia na educação básica mantem e mesmo contribui para formas de vida fortemente
coloniais enquanto não é capaz (hoje parece que ainda nem se interessa em
sê-lo) de se articular com os conflitos sociais e culturais localmente
determinados onde se situam prejudicados e marginalizados pela modernização[3].
Insistindo nesse exemplo, sugiro que pensemos numa dimensão possível de
fracasso das atividades de ensino de filosofia, a luz de caso em instituição
federal de ensino técnico integrado ao nível médio (IFAL), conduzidas por mim
em atenção às recomendações dos documentos oficiais (OCN e PCN). O mais fácil é
sempre considerar o fracasso no processo de ensino-aprendizagem como devido às
deficiências vindas de níveis anteriores dos estudantes, ou por ser fraco o
trabalho da escola ou ainda do próprio professor. O que essas causas deixariam
desconsiderado, no entanto, é o significativo acontecimento de que muitos dos
meus alunos que não gostavam de filosofia e frequentemente tinham pouco
aproveitamento da disciplina assim se portavam por acharem falsas as questões
que eu propunha de nos ocuparmos. Não fazia sentido, para muitos deles, estudar
as provas da existência de Deus de Tomás de Aquino, porque não fazia sentido
ter de argumentar pela existência de Deus. Para outros, não fazia sentido
embrenhar-se na crítica à propriedade privada de Rousseau ou Marx porque não
concebiam se viver sem propriedade privada ou mudar a sociedade como um todo
quando eles lutavam duramente para ter propriedades privadas deles. Não fazia
sentido buscar um fundamento para o conhecimento com Descartes quando, sempre,
se tratava para muitos deles problema real e primário pensar as aplicações dos
saberes e mesmo crenças ao cotidiano. No lugar de fazer esforços para privar de
racionalidade essas posições deles tomando-as sumariamente como ignorância
apoiando-se exclusivamente na parte das turmas que aceitava e se interessava
nos problemas da tradição europeia propostos para se trabalhar em sala e
obtinha bons rendimentos diante dos padrões esperados, considero que nos cabe
como filósofos educadores que a resposta de nossos educandos problematize a
nossa prática ela mesma. Assim, se há algo como uma universalidade dos
problemas filosóficos, ela se perde certamente quando se pretendem universais
uns problemas contra outros que os deslocam, situam, interpelam. Mais universal
seria uma filosofia que através de negações não se produz em sumir ao negado:
uma filosofia que seguisse filosofia para fora de limites de uma tradição
unívoca[4].
Uma filosofia que, assim como admite que os estudantes se posicionem e agenciem
os problemas das tradições com que estudam, admita que Aristóteles reconsidere
o pensamento heraclitiano, platônico etc. – inclusive lhes transformando os
problemas –, e vice-versa.
Ouso dizer que, na
construção de vínculos significativos e transformadores com a realidade local,
insistimos em fazer da missão francesa um fracasso, pois cabe a nós estabelecer
como aproveitamos o que nos seja para o nosso benefício, como coube aos
antropófagos originários do continente escolher comer o poderoso Bispo Sardinha
e dispensar o covarde Hans Staden. Saliento, contra qualquer aparência de
revanchismo barato contra a cultura ocidental, que importante não é fazer cair
suspeita sobre o estrangeiro, mas entender atitudes nossas que nos mantém
cativos, antes de toda consideração das intenções daquele. Estamos dispostos a
tomar a sério a revisão que Oswaldo Porchat Pereira nos exige fazer do que
vamos produzindo nos departamentos de filosofia? Deveríamos estar.
O
"espiritualismo" descartado pelo bom senso uspiano (cf. ARANTES,
1994) representava, seguindo Ubirajara Marques (2007), um esforço de criação de
uma historiografia que mobilizasse o passado, que dispusesse suas forças no
debate contemporâneo, inclusive no declínio da posição da filosofia na cultura
europeia do fim do século XIX. Esse presente do passado, que é ação prospectiva
de construção do tempo, oportunidade apoderada (saisi, diriam os franceses) que confere interesse no escrever história
dos clássicos informando externamente a orientação de fazer leituras internas
de obras como acontecimento de pensar: eis uma raridade entre nós, herdeiros
das missões francesas. Reivindicamos justamente isso, um filosofar que,
exercendo-se também, mas não exclusivamente, por meio de um escrever história
da filosofia, elabore o passado de forma prospectiva, ativa, presente. Ser como
discípulo do autor ora estudado, isto é, a ação de continuar a obra da tradição
no debate contemporâneo, tem com o passado os problemas viventes e por isso
chega ao mérito de retomar um passado anulado pelos historicismos, que só têm o
passado como ultrapassado. A técnica de leitura de textos, esperando que pela
sua própria execução se formasse, por acréscimo, depois de longo percurso (cf.
ARANTES, 1994), o filósofo que de saída não se foi, deixando de lado a dita
retrógrada motivação espiritualista (em favor de pobre motivação de estrita
obediência escolar reproduzida indefinidamente) de ler esse passado, acaba por
ter o filósofo que se poderia tornar-se dispensado de todo senso de
oportunidade... Caso se tivesse escutado Maugüé no que seu projeto tinha de
mais instigante, e feito de todo esforço de formação filosófica desde sempre um
esforço de fazer-se pensadores concretos, do presente, contemporâneos,
entendendo isso voltado à nossa própria situação e não exclusivamente voltados à
condição moderna europeia, estaríamos em situação diferente e esse escrito seria
francamente desnecessário. Teríamos notado, por exemplo, que a relevância do
que nos dedicamos tem que se construir com a relevância da nossa dedicação,
caso contrário não poderá ser relevante independentemente do quão importante
seja o nosso objeto de estudo. Sem senso de oportunidade, de momento, de lugar,
como se vai pensar relevantemente? Que tato histórico, que senso crítico se
terá?
Voltando à condição de
estudantes que fomos, que tendo sido, somos, tendo que nos relacionar com a
filosofia como nos foi apresentada, cumpre considerar o seguinte: se o legado
da missão francesa for reservar exclusivamente aos clássicos europeus lugar no
passado da filosofia, prospectivamente orientando um presente igualmente
eurocentrado, como ficamos? Penso que se isso decorre obrigatoriamente das
missões francesas, e nisso se sintetiza sua influência, então temos que
rejeitar esse legado. É crucial que digamos não a que o passado mobilizado no
presente da filosofia seja exclusivamente o cânone europeu. Esse é o
pressuposto metodológico mais importante deste trabalho. O trabalho mesmo de
mediação que me propus a fazer acima deve se ver vinculado a esse movimento de
situar a filosofia num terreno aberto às diferentes proveniências de
pensamento. Mais, os próprios termos dessa abertura devem ser o primeiro
problema de uma filosofia assim concebida, e não o resultado totalizado de
qualquer projeto tomado isoladamente. Se for inaceitável essa abertura, defendo
a ruptura sem mediação com o pensamento europeu feito máquina colonial. Está em
tela, saliento, a condição na qual nos formamos em filosofia, quanto a quê se
exige um posicionamento consciente, volitivo e circunstanciado ou pagar pelas
consequências da escolha a despeito disso. Formar-se em filosofia para uma
posição em que não se pode agenciar a mesma salvo na normatividade de uma cultura
impositiva é submeter-se a uma condição de pensamento impotente em opor-se a
tal normatividade, fazer-se funcionário da continuidade daquela cultura. Contra
essa formação eurocêntrica fechada não se trata de oferecer outra formação
fechada a ela oposta (que fosse uma de identidade brasileira, latino-americana
ou outra), mas de optar por uma difícil condição aberta a uma multiplicidade de
referências, certamente em conflito, mas não por isso em sumária eliminação. Contra
uma sumária eliminação do passado da filosofia (e pelo passado do presente em
pleno direito) de proveniências africanas, asiáticas, latino-americanas e quais
mais houver em favor de um cânone ocidental que se pretenda completo e
definitivo se coloca uma reviravolta necessária para a superação de uma
mentalidade colona e dependente. Ou faz-se das missões francesas (e eventuais
outras) ocasião de libertação do pensar ou rompe-se com elas.
REFERÊNCIAS
ARANTES, Paulo. Um Departamento
Francês de Ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
ANTUNES, Gabriel Silveira de Andrade. Um elogio do percurso: notas de meio-fio
entre filosofia e Brasília. [Trabalho de conclusão de curso – Licenciatura
em Filosofia]. Brasília: UnB, 2008.
COQUI, Guillaume. Quel genre d’histoire convient à la philosophie? In: Klesis. 2009, no. 11. Disponível em:
CRUZ COSTA, João. Trans/Form/Ação [online]. 2011,
vol.34, n.spe [cited 2014-04-15], pp. 107-115 Disponível em: .
Acesso em 10 Abr 2014.
MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo. A escola francesa de historiografia da
filosofia. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
MAUGÜÉ, Jean. O ensino de filosofia e suas diretrizes. Disponível em:
.
Acesso em 10 Abr 2014.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Discurso aos estudantes sobre a pesquisa em
filosofia. In:
Fundamento.
V. 1, N. 1 – SET.-DEZ. 2010. Disponível em: .
Acesso em 28 Abr 2014.
[1] Nomeamos essa seção conforme
título do livro de Marques (2007) a que nos reportamos.
[2] O propósito do mencionado artigo
de Coqui (2009) é mais geral que o de estudar a escola francesa de
historiografia da filosofia, aparecendo, no entanto, várias das propostas
metodológicas desta consideradas no estudo. Coqui volta-se ali, efetivamente, a
uma breve, porém interessante, consideração de gêneros de história da filosofia
em prática atualmente e também de um que poderia ser praticado tendo em vista
possível inspiração dos estudos historiográficos em geral, e não
especificamente os desenvolvidos sobre filosofia por filósofos.
[3] Lembre-se aqui que Arantes
(1994, p. 78) situa a hora histórico-filosófica europeia do nascimento das
práticas filosóficas uspianas na modernidade, o que me leva a pensar o
procedimento de instauração dessas práticas aqui, o que segue em expansão, como
uma (entre outras) política de modernização.
[4] No meu trabalho Um Elogio
do percurso: notas de meio-fio entre filosofia e Brasília era essa a
concepção de filosofia que eu buscava desenvolver.